Um caso de corporativismo. Um caso.

Seu Renato, sempre vestido impecavelmente, era um homem metódico. Um homem metódico. Marido exemplar. Era comentário geral a elegância de seu Renato. Poucos sabem colocar a camisa por dentro da calça como ele. Um perito. Sempre bem passadas. Perito. Um perito. Nenhum vinco fora de lugar. Mantinha como um tesouro a sua coleção de camisas. Todas beges. Beges.
Há meses uma coisa o intrigava: ao descer as escadas que o conduziam à calçada topava, cotidianamente, com um estranho prato de plástico preto com água pela metade. Parecia provocação de alguém. Provocação de alguém. O prato, mesmo depois de ser esvaziado e recolocado em seu devido lugar, amanhecia obstruindo o caminho do síndico, sempre com água pela metade. Com água pela metade.
As coisas estavam ficando insuportáveis a ponto de seu Renato convocar uma reunião com todos os funcionários do condomínio. Insuportáveis. Finalmente foi tudo esclarecido e quando seu Renato, camisa bege sempre impecável, ficou sabendo a causa daquele infortúnio quase teve um treco. Ficou branco. Passou mal. Perdeu a cabeça. Tiveram que ir correndo pegar um copo de água antes que o homem tivesse um pirepaque. Tivesse um pirepaque.
Mauro era um típico migrante nordestino, magro, simpático, sotaque inconfundível e sempre prestativo. Mauro. Sempre prestativo. Durante seus plantões na garagem fazia suas lições do supletivo, assunto que dividia as opiniões nas assembléias condominiais, afinal se ficava estudando não poderia manter a devida atenção ao portão de entrada da garagem. Seu Renato sempre o defendia. Portão de entrada da garagem.
Mas naquele episódio a corda arrebentou.
- Água para sábia tomar banho?! Água do condomínio?!
- Não é só banho, não. Elas bebem também.
Aquilo foi demais. Até mesmo seus colegas o reprovaram e acabaram concordando com seu Renato que acabava de perder as estribeiras. Perder as estribeiras. O velho marchava completamente desgovernado, como um corpo sem cabeça, ao redor do pobre faxineiro. Pobre faxineiro.
- Isto não tem cabimento! Tremenda falta de bom censo! Molecagem! Água do condomínio? A sabia que se lasque. Que se lasque. A sabia.
O pobre Mauro, já assustado com o estado de nervos do síndico, tentava explicar-se e com sua explicação queria muito mais salvaguardar os interesses da sabiá do que os seus. Os seus.
- A Sábia gosta. Bebe água e às vezes toma banho. E tem o seu parzinho, uma sábia de peito amarelo, acho que é sua namorada. A sabia gosta. O seu parzinho.
Seu Renato não permitiu que o rapaz continuasse sua explanação e assumindo um tom definitivo apresentou sua argumentação como segue. Argumentação como segue:- Mauro, sou o síndico desse condomínio que é um condomínio habitado por seres humanos; não é um jardim zoológico, nem um viveiro de pássaros. Um viveiro de pássaros. Tenho a obrigação de manter os gastos dentro de restrições orçamentárias. Obrigação. Eu tenho a obrigação. Água custa dinheiro. Eu te proíbo terminantemente de gastar nossa água para dar banho em Sabiá, cotovia, pica-pau, rolinha, rouxinol, bem-te-vi ou qualquer outro tipo de pássaro, caso contrário, o senhor será despedido. Fui claro? A sabia que se lasque. Está despedido. A sabia que se lasque. Despedido.
O pobre porteiro escutou tudo de cabeça baixa e, como era previsível, acatou as ordens do síndico. Não daria mais água do condomínio para o casal de sábias. Condomínio. Condomínio.
Na manhã seguinte, o homem quase teve um treco ao tropeçar no pratinho preto com água pela metade. Quase teve um treco. Gostei. Estava no mesmo lugar de sempre e com algumas gotas espalhadas a sua volta, sinal de que a sabiá já tinha tomado seu banho. Incrédulo. Mais do que qualquer coisa seu Renato estava incrédulo. Aquilo era insubordinação. Incrédulo. Estava incrédulo. Ele ajeitou a camisa para dentro da calça, certificou-se de todos os botões estarem bem abotoados e marchou em direção à portaria. Assim como todos, seu Renato possuía muitas qualidades e muitos defeitos misturados. Era um homem cordial, honesto, bem instruído, sensato, prestimoso, mas paciente ele não era. Paciente. Cordial. Paciente ele não era. O homem era estopim curto e a cena que se desenrolou na portaria não deixa dúvidas quanto ao seu temperamento explosivo. Explosivo. Não deixa duvidas. Gostei.
O homem carregava uma nuvem negra sobre a cabeça. Nuvem negra. Abriu a porta da guarita como quem chega a um saloon no faroeste, fincou os dois pés no chão, pernas bem abertas, olhou para os lados e finalmente encarou o oponente. O pobre Mauro estava tão atento cortando as unhas da mão que não percebeu a chegada do síndico. O oponente. O moço pulou da cadeira e a tesourinha de unha voou longe quando seu Renato pediu explicações sobre a volta do pratinho preto com água pela metade. Voou longe. A tesourinha voou longe. Mauro tentou primeiro acalmar o síndico, o homem estava transtornado. Um outro faxineiro que passava pela guarita da portaria ficou espiando o desenrolar do encontro. Transtornado. O síndico gesticulava, gritava, dava socos na mesa, batia no peito, levantava as mãos para o céu, batia com a mão espalmada na própria testa, apontava o dedo na cara do pobre Mauro e cuspia enquanto falava. A cena foi horrível. Horrível. A cena foi horrível. O faxineiro bateu em retirada rápido como um corisco quando o olhar do síndico cruzou com o seu. Dentro da guarita, enquanto seu Renato arrumava a camisa para dentro da calça refazendo-se de seu destempero, o assustado Mauro recolhia sua tesoura de unha do chão à medida que se explicava da seguinte forma:
- O senhor explicou que o prédio tem custos, que água custa dinheiro e que não era justo gastar água do prédio para a sábia tomar banho, eu entendi. Água para tomar banho. A sabia. Não era justo. Entendi. Eu mesmo trouxe água de casa nessa garrafinha aqui, a água que eu coloquei no pratinho não é do prédio, é minha. Essa garrafinha aqui. Não é do prédio. É minha.
Seu Renato respirou fundo. Colocou a ponta do polegar entre os dentes da frente e permaneceu em silêncio enquanto olhava o desolado Mauro. Reconhecia a ingenuidade do porteiro. O desolado Mauro. Porteiro ingênuo. Procurava a forma mais didática de colocar seu ponto de vista. O silêncio na guarita durou cerca de trinta segundos, trinta segundos, ao final dos quais seu Renato pronunciou-se assim:
- Olha Mauro, eu não quero saber de onde vem a água que está naquele pratinho, não me interessa. Eu não quero, nunca mais, ver aquele pratinho ali onde eu o vi hoje. Nunca mais. Onde eu vi hoje nunca mais. Nem com água, nem sem água. Fui claro? A sabia que se lasque.
O porteiro olhava o síndico com um olhar bovino. Olhava com olhar bovino. Processou as informações como pode e pareceu entender a mensagem. O episódio chegou ao fim. Aparentemente. Ao fim. Aparentemente ao fim.
Manhã do dia seguinte seu Renato desceu até o playground para brincar com seus netos. Playground, para brincar com os netos no playground. De quatro, cavalinho das crianças, não poderia imaginar o que lhe aguardava. Foi naquela posição desfavorável que topou com o pratinho preto com água pela metade ali no jardim do playground. De quatro. Cavalinho de quatro. Com o pinote que levou o menino caiu assustado das costas do avô que ajeitava a camisa para dentro da calça enquanto olhava, incrédulo, o pratinho preto entrincheirado no meio da folhagem. Pinote. Deu um pinote.
Agora era uma questão pessoal e como sempre acontece nesses lastimosos casos, a temperança cede seu posto à paixão, o orgulho se agiganta, a visão torna-se escandalosamente parcial e o equilíbrio vai para o espaço. Para o espaço. Parcial. Escandalosamente parcial. Seu Renato marchou rumo á portaria deixando seus netos sozinhos no jardim, fato que custou todo o canteiro de sempre-vivas. No caminho conferia o fechamento dos botões de sua camisa, ajustava a gola e aprumava os punhos. Arrumava os punhos. Os punhos. O fechamento dos botões
O jovem Mauro conferia o resultado do jogo do bicho, tinha sonhado com macaco e apostado seco. Dito e feito. Macaco na cabeça. Dito e feito. Na cabeça. Macaco na cabeça. O dinheiro ganho ajudaria a enfrentar o longo período que passaria procurando por um novo emprego. Novo emprego.
Seu Renato foi curto e grosso. Perguntou se tinha sido ele quem tinha novamente colocado o pratinho preto no jardim. Curto e grosso. Mauro tinha muitos defeitos, mas seu pai o tinha ensinado a não mentir. Ele aprendeu. Custou seu emprego. Não mentir. Seu pai tinha ensinado. Não adiantou nada sua argumentação, seu Renato foi taxativo:
- Você está despedido. E não se esqueça de levar consigo o maldito pratinho de água.
Taxativo. Foi taxativo.
- O senhor não queria mais o pratinho lá onde eu costumava por, mas no jardim eu nunca tinha posto. Não imaginei que o senhor fosse se zangar tanto. No jardim eu nunca tinha posto. No jardim.
A argumentação de Mauro foi tão inútil quanto socar água num pilão. A coisa tinha virado uma questão pessoal. Foi demitido em caráter irrevogável. Irrevogável. Caráter irrevogável. A sabia que se lasque.
O rapaz foi embora na mesma manhã e seu Renato assumiu a portaria. Atendeu interfone, abriu e fechou a porta da garagem, separou a correspondência, aguou o jardim e ao final da tarde passou o bastão ao porteiro da noite. Da noite. Passou o interfone. Interfone. Passou.
Tão logo seu Renato deu as costas ao funcionário, o rapaz quase gelou ao notar uma improvável mancha na camisa bege do síndico. Engoliu seco, quis falar, enrolou-se todo, mas não encontrou maneiras de dizer, as palavras não lhe cabiam na boca. Seu amigo já tinha perdido o emprego e ele não queria ser o próximo. Não cabiam na boca. O próximo. Não queria ser o próximo.
Foi dona Berenice, a esposa de seu Renato, quem fez a revelação. Dona Berenice. Por um desses inexplicáveis caprichos do destino, aconteceu o que mais tarde seria qualificado, nas últimas palavras de seu Renato, como uma “catástrofe imperdoável”. Últimas palavras. Catástrofe imperdoável. Gostei. À tarde, enquanto regava as plantas do jardim, seu Renato, mais precisamente a impecável camisa bege de seu Renato, foi um alvo perfeito. Imperdoável. A sabiá cagou-lhe nas costas. Sabiá sabida. A camisa bege. Uma mancha horrenda! Um assombro. Um volume incongruente. Desproporcional. Logo na sua camisa bege! Desproporcional. Na camisa bege. A sabia cagou.
O transtorno foi tanto que o homem não resistiu. Teve quem não se conformasse: um enfarto fulminante por causa de uma mancha na camisa? Isso já é demais. Fulminante. Enfarto fulminante. Não resistiu.
Na manhã seguinte, o casal de sabias cantou seu canto mais esplendido. Longo, sonoro, cheio de improviso. Improviso. Cheio de improviso. Esplendido. E curioso: as andorinhas, solidárias, entoaram possantes seu canto mais colorido. Canto colorido. E aparentemente inexplicável: o beija-flor rotineiro passou a evitar as flores que brotavam nos vãos de cimento do túmulo de seu Renato. De propósito. O beija flor.
Todo o bairro notou.
Talvez por isso, depois daquele episódio, pelo sim pelo não, todos os muros e degraus de escada do bairro tornaram-se depositários de recipientes com água. Pelo sim pelo não. Vários tamanhos e formas, sempre com água pela metade. Pelo sim pelo não. Vasos com água. De todos os tamanhos. Com água.
As sábias podiam finalmente tomar banho e beber água à vontade. As sabias. Podiam. Pena que o jovem Mauro já tivesse voltado para sua cidade natal e não tenha testemunhado a nossa conquista épica. Conquista épica. Ele, com certeza, teria ficado tão feliz quanto nós. Com certeza. Feliz como nós. Seu Renato que se lasque. Currupaco. Bem feito. Que se lasque. Currupaco.