Seu Gilberto cumpre uma verdadeira via-crucis caminhando entre as mesas, tapinhas nas costas, sorrisos largos, olhares cúmplices. Um irretocável cicerone. Vez ou outra oferece o microfone, mas nunca para quem já não se saiba que gosta de cantar. O homem é um mestre. Bem que no começo da noite, quando deu a escalação: seu Silvio no violão – sei que ele é homem que cultiva jardins além de participar do grupo de seresta -, Ditinho na percussão e Sebastião no bandolim; seu Gilberto se apresenta como “eterno escravo de vocês”.
O grupo é conhecido pela esmagadora maioria dos presentes, mais do que conhecidos parecem íntimos.
No salão dividido por seis arcos pintados de salmão, as paredes são ornadas com cerca de dez quadros de madeiras onde estão esculpidos cavalos.
- Você reparou que todos os quadros são iguais? Todos com um cavalo.
- Não são iguais; cada cavalo é um cavalo específico, repare bem.
Era verdade. E eu estava me achando o rei da cocada preta por ter notado os quadros, e não só os quadros como também o que estampavam os quadros: cavalos. Como sou observador pensei e logo quis impressionar minha companheira, mas não adiantou. Ela já tinha notado também, e com mais perspicácia que eu. Não eram imagens de um mesmo cavalo, mas sim de vários cavalos diferentes. Evidente.
Naquela manhã tinha lido um artigo do Drauzio Varella no qual defendia a superioridade das mulheres. Tudo me pareceu muito razoável. Argumentação perfeitamente encadeada. Elas são superiores. Nós meio patéticos. Como negar?
Mas naquele bar da cidade do interior o ambiente era surpreendentemente masculino, como atestavam os quadros dos cavalos. Nas mesas muitos grupos de amigos de longa data. Alguns bebendo um pouquinho mais e se permitindo certos sentimentalismos.
O repertório agradava ao público majoritariamente cinquentão, talvez sessentão. Nelson Gonçalves, Benito de Paula, Adoniram, Paulinho da Viola, Ataulfo Alves e congêneres. Alguns, mais expansivos, tinham livre trânsito em várias mesas. Circulavam daqui prá li, ora se sentavam com uns ora com outros.
Olhava admirado. O ambiente tinha jeitão de matinée de boêmia. Era cedo, dez da noite. Mas o clima estava em ebulição, uma ebulição recatada, comedida, coisa de gente madura. Já devem ter dado muito vexame na vida mas, hoje já são mais seletivos e usufruem das razoabilidade que vem com a idade.
O grupo de seresta é todo generosidade. Tocam para o seu público, estão a serviço. Não existe subserviência, é doação. “eterno escravo de vocês.”
Tem algo de menino naqueles rostos sulcados, ares de traquinagem nos andares lentos, diversão nos olhares de pálpebras caídas. A cada nova música reacende o reboliço. Existem certas idades quando tudo faz referência a alguma lembrança, alguma experiência inesquecível.
Já é tarde, mais de onze, quando chega um grupo de quatro senhoras. Sentam-se animadas, agitadinhas, quase zombeteiras. Seu Gilberto vai até elas, claro. Oferece o microfone. Elas se esbaldam.
- Vamos pedir a conta?
A noite já tinha valido. Lá era um ambiente de. homens. Os quatro seresteiros, os garçons, as mesas com os velhos amigos e os quadros dos cavalos. Tudo muito masculino. Exalava aroma de “água velva”. E mesmo assim tudo era bondade, amizade, gentileza, amorosidade, traquinagem, leveza.
- O Drauzio que me desculpe, mas os homens também são demais!
Seu Gilberto se aproxima, primeiro para lamentar que estejamos de partida, depois para oferecer o microfone mais uma vez. Entrega o microfone e sopra o próximo verso:
- Marina morena você faça tudo, mas faça o favor...
Evidente que os homens estariam falando das mulheres.
Minha companheira abre a porta do carro para mim. Outro grupo de três senhoras octogenárias entra no salão. Estão bem animadas.
Vou dormir satisfeito por finalmente ter conseguido argumentos para discordar do artigo do Drauzio. E como prêmio extra, aquelas senhoras ainda me fizeram crer que a vida vai, mas vem vindo.
domingo, 23 de maio de 2010
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