Humberto estava com sono, as luzes no sentido contrário ofuscavam-lhe a visão. Para piorar ainda chovia. A festa tinha sido muito animada. Bebida a rodo, boa música e comida de primeira. Fazia tempo que a família – Humberto, Sarah e a filha Mariana - não passava tanto tempo reunida.
Desde que entrara na faculdade, Mariana nunca mais fora a mesma. O casal sentia falta da filha, eram muito apegados à menina e não sabiam como lidar com a idéia de que os filhos crescem.
Quando se conheceram, vinte e cinco anos atrás, eram dois caipirões na cidade grande. Rapidamente se reconheceram um no outro. Sarah era muito sozinha, na escola tinha raras amigas, sempre fora introvertida. Humberto era estudioso, não era bom nos esportes e isso o deixava à margem do convívio coletivo. Sofria de desvio no cepto nasal e dormia mal o que lhe tornava sonolento, fato que rapidamente virou motivo de chacota entre os colegas. Humberto parecia o Keith Richards dos Rolling Stones e esse foi o assunto do primeiro encontro com Sarah. Incrível como vocês são parecidos. Papo vai, papo vem e virou namoro rapidamente.
Namoraram, entraram na faculdade, casaram. Levavam uma vida rotineira sem grandes acontecimentos, mas eram felizes. Sarah queria ser mãe desde muito pequena, sempre sonhava em amamentar, não sabia por que vivia tão intensamente a fantasia do aleitamento.
Por ironia do destino demoraram quatro anos para engravidar, e quando aconteceu foi graças ao tratamento contra infertilidade. Gastaram uma fortuna no tratamento, mas a recompensa foi enorme. Quando Mariana nasceu o casal ficou ainda mais apaixonado. A criação da menina uniu ainda mais os dois. Eram uma família feliz.
Foram convidados para a festa de casamento de um sobrinho que morava no interior. Vamos Humberto, viajar é tão bom. A gente bate e volta. É que Humberto não gostava de dormir fora de casa. Sarah estava radiante com a idéia de que Mariana viajaria com eles, a menina era muito amiga do noivo, tinham a mesma idade e namoraram durante um tempo, namorico à toa, coisa de adolescentes.
A festa esteve muito animada e Humberto, levemente embriagado, arriscou pegar a guitarra da banda e explorar sua parecença com o Keith Richards. O assunto da festa.
Mariana dormia no banco de trás e isso foi fatal. Estava sem cinto de segurança e foi atirada pelo vidro traseiro a mais de cinqüenta metros do local do acidente. Só isso já seria suficiente para arruinar a vida de Humberto, mas o destino foi ainda mais perverso. No reflexo, ele guinou o volante para a esquerda, fato que colocou Sarah como escudo na sua frente. Ele sobreviveu graças a ela.
De uma hora para outra sua vida estava arruinada. A depressão veio violenta. Meses sem sair do quarto escuro. Não tinha fome, perdera o sono, sede não sentia. Era um farrapo, um resto.
O simples fato de você reconhecer sua impotência diante da situação e vir procurar ajuda já é um fato extremamente positivo, o primeiro sinal de sua recuperação que, acredite, já começou. Humberto iria dividir o quarto com Dal Rovere, um homem muito forte, tão musculoso quanto quieto. Dizia ter sido campeão mundial de halterofilismo na década de cinqüenta. Os passeios pelo pátio, as partidas de ping-pong e as taças de gelatina roubadas depois do almoço criaram aquele repertório de cumplicidade que transforma conhecidos em amigos. Humberto apresentava uma melhora rápida e promissora. Após pouco mais de oito meses de tratamento foi chamado pela equipe médica: você está de parabéns, a partir de hoje nós o consideramos plenamente recuperado, você superou, Humberto. Agora é vida nova, e lembre-se: você ainda está vivo.
Aquelas palavras ecoaram na cabeça de Humberto como um mantra: você ainda está vivo. Voltou ao trabalho, retomou a academia e até conseguiu uma promoção. Passava por curtos e compreensíveis episódios de recaídas, dos quais ressurgia fortalecido. Só não queria casar-se novamente, a mera sugestão de sofrer novas perdas lhe era insuportável.
Humberto transformara-se na prova inequívoca de que o tempo é capaz de curar tudo. Personagem real de uma história de superação exemplar e edificante.
Numa tarde de domingo nosso personagem assistia a uma partida de futebol do campeonato brasileiro pela televisão quando o telefone tocou. Um réles telefonema numa tarde de domingo... Incrível como nossas vidas podem estar à beira de um abismo quando menos desconfiamos e tudo parece calmaria. De um momento para o outro as coisas tomam um rumo inesperado e nos tornamos vítimas de um destino cujo controle nos escapa por completo. Humberto foi apenas mais um entre tantos.
Atendeu ao telefone com um copo de cerveja na mão sem saber que aquele seria o último. Uma voz de homem apresentou-se de forma solene: era o motorista da betoneira que se chocou contra seu carro naquela madrugada fatídica. Humberto nunca quis saber nada sobre o motorista que tirou a vida de sua filha e de sua esposa, por uma questão de sobrevivência apagara aquela personagem de sua vida. O homem dizia-se muito perturbado com o acidente, passava noites em claro tendo visões do carro de Humberto aparecendo na frente da betoneira, tinha pesadelos recorrentes, sua vida tinha virado um inferno. Humberto ouvia paralisado, petrificado. Ele pedia um encontro, precisava do perdão de Humberto. Não suportava a culpa que passou a carregar depois do acidente. Foi isso que o fez telefonar-lhe naquele domingo. Refeito do choque inicial, Humberto não encontrou forças para dizer não. A voz do motorista ao telefone tinha a aura de um fantasma. Ele teve medo. Um medo pavor. Tanto que começou a gaguejar, coisa que nunca acontecera antes. Só teve o ritmo de sua respiração restabelecido depois de uns dez minutos após desligar o telefone. Afundado no sofá tentava convencer a si mesmo de que o perdão que concederia faria bem a ele também. Acreditou. Marcaram numa pizzaria do centro da cidade, naquela noite, às dez horas.
Enquanto lavava a cabeça, reviveu todo o martírio no qual sua vida tinha se transformado após o acidente. O interminável inventário de hipóteses que poderiam ter impedido o acidente, mas que não aconteceram, assombrou o final de sua tarde. Quase se arrependeu de ter aceitado o convite, mas como dizer não àquela voz? Não podia imaginar qual seria sua reação ao ver-se frente a frente com o motorista daquela betoneira que cruzou seu caminho naquela noite maldita. Não sabia se teria a grandeza de perdoar o homem que ao dormir ao volante atravessou a estrada e a sua vida. Olhou-se no espelho e desejou sorte a si mesmo antes de sair. Talvez devesse tê-lo feito com mais convicção.
Ao entrar na pizzaria, Humberto sentiu suas mãos geladas a despeito do intenso calor daquela noite. Estava perdido. Não sabia exatamente a quem procurar, nunca quis saber nada sobre o motorista da betoneira. Sentiu um enorme frio percorrer-lhe a espinha e arrepiar-lhe todos os pelos do corpo quando viu o que viu. Dal Rovere, seu parceiro de quarto durante a internação, sentado atrás da mesa. Era uma epifania maldita. O homem, ao vê-lo, sorriu em sua direção. Estava lá, sentado esperando sua chegada como uma criança que anseia ser liberada do castigo. Súbito sua vista escureceu. Teve ganas de matar como nunca imaginou pudesse sentir. Nos momentos de maior sofrimento durante a internação chegou a aninhar-se no colo de Dal Rovere como se fosse um colo materno. Havia se humilhado diante de seu algoz. Imperdoável. Aquele instante fugaz durante o qual os olhos de Humberto miraram os olhos de Dal Rovere era a eternidade.
Mesa para uma pessoa, senhor? Não, estou procurando alguém, mas acho que não é nessa pizzaria. Virou as costas e foi embora. Foi para casa correndo, em transe. Sentiu nojo de cada instante de sua vida, de cada lembrança. Chorou. Chorou de raiva. Descabelou-se. Teve pena de si mesmo. Sua vida acabava de descarrilar.
O encontro não foi nada bom para Humberto. Voltou a ter pesadelos, tinha medo de tudo, perdeu o emprego, e os poucos novos amigos se afastaram. Voltou a ser internado, seu caso agora parecia mais grave, sofria de delírios. Começou a falar coisas sem sentido, ria alto pelos cantos e só comia de cócoras, passou a usar fraldas, não controlava suas funções esfincterianas e perdera toda noção de higiene.
O último esforço de Dal Rovere em localizar o velho amigo acabou levando-o de volta ao hospital onde se conheceram. Contou ao médico não ter visto Humberto, desde que deixara o hospital, até aquela noite na pizzaria em que costumava ir aos domingos com sua esposa. Parecia que os dois tinham decidido apagar aqueles oito meses da lembrança, como um grande equívoco que decidimos estirpar de nossas vidas. Ela tinha ido ao banheiro, e ele a esperava para irem embora, quando, surpreendentemente, o velho amigo apareceu. Dal Rovere contou que sorriu em sua direção Disse que se alegrara ao reencontrar o velho parceiro de quarto, e estava sendo sincero, e que não entendera a reação do amigo: tinha ficado pálido, olhos vidrados e de repente virado as costas e saído de forma estabanada, derrubando mesas e esbarrando nas pessoas. Dal Rovere precipitou-se atrás do amigo, mas rapidamente perdeu o contato visual com Humberto que corria desesperadamente pelo meio da rua. Desde aquela noite tentava encontrar o velho colega de infortúnio e finalmente decidira voltar ao hospital. Confessou preferir não tê-lo encontrado caso soubesse de sua recaída. Olhou comovido para Humberto e chorou a sorte do amigo que permanecia alheio a sua presença, aliás, alheio a qualquer presença que escapasse ao universo de seus devaneios. Seria capaz de qualquer sacrifício para interferir no destino do amigo. Jurou à mulher. Mais tarde, já em casa, colocou um disco do Rolling Stones na vitrola. Não queria a imagem devastadora que tivera do amigo naquela tarde, preferia lembrar-se dele como o sósia do Keith Richards. Dal Rovere lembrava de como tinha sido importante terem sido colegas, talvez amigos, nos momentos mais dolorosos da internação e ficaria mais aliviado ao saber que Humberto não continuaria sozinho em seu quarto; ganharia a companhia de um homem simples, motorista de caminhão betoneira, um suicida.