quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Revirando o baú

Estava fuçando uns textos antigos meus e encontrei um que achei bem atual, me deu vontade de compartilhar.
Aí vai:
                         Como num sonho
O cenário pode ser uma rua movimentada de uma grande metrópole desconhecida. Carros vêm e vão, pessoas anônimas circulando e você fugindo de algum perigo muito ameaçador, desses que, só de pensar, causam frio na barriga. Você tenta correr, mas suas pernas não respondem ao seu comando, elas parecem meio anestesiadas e se movimentam com o peso de uma tonelada. Você continua tentando correr, mas é muito difícil e, de repente, você acorda aliviado.
Todo mundo já sonhou com algo parecido. É uma fantasia que faz parte do inconsciente coletivo e, é a melhor descrição que encontrei para o sintoma da Esclerose Múltipla em mim.
A Esclerose Múltipla é também conhecida por Síndrome da Fadiga Crônica, um nome bem menos cabeludo e muito mais esclarecedor. Em nosso trabalho no hospital, andamos perto de seis horas por dia. Andamos, brincamos, fazemos rotinas besteirológicas, nos movimentamos enfim.
É evidente que me encontrei diante de um problema.
E se eu quiser correr? E se eu não agüentar caminhar até o final do dia? O que eu faço quando precisar descansar no meio do trabalho? Essas são questões que costumavam perturbar meu sono nas noites que antecediam minhas idas aos hospitais. Aprender a conviver com os limites que a Esclerose Múltipla me impõe é uma lição diária, mas quando entrei nos Doutores da Alegria me confrontei com uma outra questão: Eu estou apto a fazer este trabalho com as limitações físicas que a doença me impinge?
Hoje, alguns anos mais velho e dormindo melhor nas noites que antecedem minhas idas aos hospitais, digo que a resposta é sim.
Afinal, se o palhaço é uma espécie de patinho feio, um ser que não se adequa aos padrões da monótona normalidade, por que não poderíamos ter um palhaço que precisasse usar uma bengala e que andasse a passos lentos?
Demorei a entender - entender com a carne e não com a cabeça - que o meu palhaço pode, e deve, ser uma expressão de minha alma. E será tão mais verdadeiro e artisticamente eloqüente, quanto mais revelar quem verdadeiramente sou, com todas as minhas mazelas, imperfeições e desajustes. Afinal, é justamente meu lado torto, revelado sem constrangimentos, que vai fazer de mim um bom palhaço. As pessoas gostam dos palhaços, exatamente por que eles nos lembram que somos imperfeitos, fazemos errado, não temos o corpo escultural das meninas de propaganda de cerveja, não jogamos basquete como o Michael Jordan nem futebol como o Ronaldinho e, nem por isso deixamos de ser lindos, amáveis, apaixonantes.
Não sentimos pena do palhaço que tropeça e cai com a cara no bolo, sentimos inveja da sua falta de compromisso com o acerto, de sua liberdade em fazer errado e continuar feliz.
Todo mundo já sonhou que, de repente, seu corpo fica leve e, como num passe de mágica, começa a voar. Uns precisam balançar os braços como se fossem asas, outros simplesmente saltam e saem voando, outros se atiram de penhascos para voar. Não importa qual o método utilizado, o que importa é que todo mundo já sonhou que é capaz de voar. É um sonho delicioso, desses que nos fazem acordarmos felizes, com a memória de termos sido personagens principais de um conto de fadas..
Sonhar que voamos é mais uma fantasia que faz parte do inconsciente coletivo e, é a melhor descrição que encontrei para a sensação que tive quando entendi - com minha alma e não com minha cabeça - que meu palhaço podia andar devagar, amparado por uma bengala e até se escorar nas paredes de vez em quando e continuar sendo um palhaço.