sábado, 10 de julho de 2010

Procura-se um trem

Para trajetórias incertas temos a lição de Ariadne: um singelo novelo de lã. Acho que perdi o meu.
Não identifico onde ficou a matriz livre das recusas, onde se perdeu o fio da meada, e as linhas já se embaraçaram tanto que restou só um grande nó.
Gostaria que as coisas fossem mais simples como quando eu jogava pedras do outro lado da linha do trem. A gente só parava quando vinha o trem, e parar era o ápice da aventura, afinal era quando o trem passava. Evento máximo daquelas tardes. O trem passava pesado, robusto, sério e nós ficávamos esperando sua passagem para voltarmos a lançar as pedras para o outro lado da linha.
Imediatamente após a sua passagem ficavam alguns segundos de eternidade antes de retomarmos a inútil aventura do lançamento das pedras. Durante aqueles segundos éramos visitados por uma perplexidade diante do mundo, aquele trem era muito grande, muito pesado, muito barulhento, não podíamos nada contra ele, só nos cabia a resignação. Nossos olhares imóveis eram a confissão de nossa derrota. A pedra na mão fechada e suada era nossa melhor cúmplice.
Um dia atirei a pedra no trem. Ninguém disse nada. Teria feito algo muito horrível. De onde veio aquela coragem? Rapidamente minha prima atirou suas pedras também. O barulho do trem era tão alto que as pedras ficaram mudas, só uma poeira da explosão delas contra os vagões encardidos. Ficamos exultantes com nossa façanha, não falamos nada muito embora, no íntimo, soubéssemos que tínhamos feito algo grandioso.
Depois daquela tarde, atirar pedras do outro lado da linha não tinha mais tanta graça, fomos procurar outras coisas. Minha prima Claudia virou atleta e mora no Canadá e eu virei palhaço. Não encontrei mais as pedras perfeitas para serem atiradas. As melhores eram aquelas arredondadas, nem muito grandes nem muito pequenas. Tinham algumas que eram lindas, tão lindas que devolvíamos ao chão, não mereciam ser atiradas. Eram recolocadas em seu santuário de areia vermelha, fina, restos das cerâmicas. Trem já não existe mais.
A vida me colocou de novo a beira da estrada de ferro, e isso é um presente tão encantado quanto os pacotes que papai Noel me trazia nas noites de natal; só que agora não encontro mais a matéria da qual é feita a ousadia, quero ousar mas não sei como, quero me arriscar mas não sei onde, quero atirar mais pedras no trem. Pedras inofensivas como aquelas de minha infância; tão libertadoras, tão ousadas, tão sensuais.
O trem está de novo lá, enorme, barulhento, encardido e parece que tem tantos vagões que não quer acabar de passar nunca, só que ficou transparente, as pedras atiradas, nas raras vezes que as encontro, não explodem mais contra sua lataria, elas o atravessam e somem do outro lado.
O mundo sofisticou-se; não é mais feito de pedras no chão e trens encardidos, e minha prima mora na distante e gelada Toronto.
Os caminhos das minhas trajetórias me trouxeram até esse ponto. O bom é que agora tenho urgência, a mesma urgência do moleque com a pedra na mão. A pedra virou meu nariz vermelho, falta reinventar a ousadia e devolver o corpo ao trem-fantasma.