O homem do terno azul-escuro






Tudo começou quando tinha apenas dez anos de idade. Um homem de terno azul-escuro apareceu-lhe em sonho anunciando em tom solene: teu pai não passa de abril. Dito e feito. Dia trinta e um de março sua mãe ficou muito apreensiva com a demora do marido que não costumava chegar tão tarde do trabalho. Tinha sofrido um derrame cerebral. Não resistiu. Sonhos premonitórios se tornaram constantes na vida de Julia. Previu acidentes, mortes, até um pequeno naufrágio com uma barca na Baía da Guanabara. Ela não gostava nada daquilo. Não tinha controle sobre eles, vinham e pronto. Previu também seu primeiro encontro com Jacaré. E tudo aconteceu exatamente como no sonho sonhado dois meses antes.

Havia conhecido o dono daquela mansão num vernissage; o coroa logo se encantou com os olhos azuis e a conversa fácil da moça. O coroa era casado, não tinha filhos e viajava muito com a esposa. Em muito pouco tempo Julia já tinha a chave da mansão. A luz da sala se acendeu no exato momento em que Julia fechava a gaveta da cômoda. O casal chegou quando Julia não esperava. Faziam barulho, riam alto, arrastavam cadeiras, caminhavam trôpegos e cantavam marchinhas de carnaval. Bêbados como estavam, demorariam a subir as escadas. Isso dava tempo para Julia pensar. Certificou-se de ter pegado o colar de pérolas. Estava no bolso de seu casaco junto com os anéis e os brincos de ouro. A questão agora era como descer as escadas e passar pela sala de estar sem que seu caminho cruzasse com o do casal. Nesse negócio era importante ter paciência.

O casal estava muito alegre e as circunstâncias indicavam que não sossegariam tão cedo. Amanheceria e os empregados acordariam. Julia andava de um lado para o outro esfregando as mãos. Sempre fazia isso quando nervosa. Ela deu um salto quando uma mão tocou-lhe o ombro. Quase soltou um grito que foi prontamente sufocado pela mão grossa do rapaz. O rapaz era bonito, porte atlético, um bigodinho fino e um sorriso encantador. Julia estava assustada, mas alguma coisa no rapaz a encantava. Parecia totalmente dono da situação, inteiramente à vontade. Como os donos da mansão continuassem a algazarra lá em baixo, o rapaz percebeu que teriam tempo. Pegou Julia pela mão e arrastou-a pelo corredor em direção ao quarto do casal. A moça não entendeu a atitude do rapaz e como não podia gritar meteu as unhas nas suas costas. O rapaz virou-se e apertou a moça junto ao peito, o gesto que inicialmente era um impulso de defesa, rapidamente ganhou malicia e a cena do andar de baixo reproduziu-se no andar de cima. O casal de coroas já não dispunha do mesmo vigor nem estavam num contexto tão excitante quanto Julia e Jacaré. A cena do andar de baixo era a caricatura quase falida da fogueira que incendiou o andar de cima. Quando perceberam que o casal no andar de baixo havia finalmente adormecido, Julia quis aproveitar a situação. Jacaré também. Mas o que cada um compreendia por aproveitar a situação era diferente. Julia já estava aflita, e Jacaré ainda não havia saciado sua volúpia. Quando a luz do dia anunciou o limite para que os dois escapassem, os dois gatunos desceram as escadas como se fossem as escadas de sua casa. De passagem, Julia ainda apanhou um vaso que estava ao lado da porta de saída, embrulhou-o em jornal e colocou-o na bolsa enquanto Jacaré vasculhava a carteira da coroa.

Aquela foi a primeira de muitas vezes em que os dois se encontrariam. Viveram uma longa estória que, não fosse o fim trágico, até poderia ser anunciada como uma exemplar estória de amor. Eram lindos, talentosos e aprenderam a se amar no contexto nada comum em que levavam as suas vidas. A vida dos dois entrelaçava-se intercalando longos períodos de convivência – quando realizavam assaltos sempre regados com muita aventura, paixão e juras de amor - com períodos de completa separação durante os quais os dois nem sequer sabiam se o outro ainda estava vivo.

Dois grandes larápios nutriam admiração mútua pelos golpes aplicados pelo outro. Ambos especializados em assaltos a mansões. Sem uso de violência, sem arrombamentos, sem desordem. Conheciam os donos das mansões, seduziam-nos e faziam a rapa. Tentaram até trabalhar juntos, mas Jacaré profetizou o fim da parceria em tom solene: onde se ganha o pão não se come a carne.

Como diz o ditado: um dia a casa cai. Em situações e momentos diferentes, os dois foram pegos. A vida ligada ao crime exigiu, dos dois, uma boa dose de crueldade. O glamour dos primeiros assaltos foi cedendo espaço à crueza do dia-a-dia. As circunstâncias de suas vidas os tornaram violentas. Muito.

Agora, quase trinta anos separados, dona Julia já tinha os cabelos brancos e muito compridos, mal tratados, uma boca sem dentes e uma língua enorme que mal cabia dentro da boca, nem sombra da rainha do carnaval do Cambuci/1948.

Graças aos esforços da filha, moça sem pai que, surpreendentemente, Júlia coseguira criar direito, foi transferida do manicômio judiciário. Viveu um tempo com a menina, mas o convívio foi insuportável. A solução foi aquele sanatório. Pequeno, porém honesto, como dizia sua filha. E foi lá - quem diria? - onde viveu seus últimos momentos de intensidade e vigor. Julia e Jacaré tinham passado por uma fase de seis meses juntos na Colômbia. Durante uma fuga, quase morreram e se viram obrigados a se separar. Julia voltou para o Brasil. Jacaré sumiu. Julia seguiu com seus golpes. Cada vez menos glamour e mais frieza. Mais crueldade. Mais loucura. Passaram-se anos e Jacaré foi apanhado após cometer um crime bárbaro. Considerado inimputável foi internado no sanatório onde seu grande amor estava internado há anos. O reencontro foi quase tão emocionante quanto aquele primeiro durante o assalto àquela mansão. A mesma mão surpreendente no ombro de Julia, a mesma surpresa, o mesmo encanto, o mesmo frio na barriga.

Jacaré, agora velho e devastado pelo câncer, tinha memória prodigiosa para algumas coisas e passavam tardes inteiras relembrando as marchinhas de carnaval dos bons tempos do Cambuci. Os dois viviam rindo e se divertindo com os relatos do outro. Dona Julia chegava a chorar de emoção durante alguns relatos. Respirava fundo, levava o lenço à boca, fechava os olhos para depois, recomposta, retomar o fio da meada.

Os enfermeiros e funcionários do sanatório falavam, com malícia, sobre a intimidade dos dois. Aquele não era o cenário perfeito para uma estória de amor, mas a estória dos dois nunca foi perfeita. No sanatório viveram sete meses de lua de mel. Todos lamentariam o fim daquele idílio, principalmente dona Júlia que, mesmo sendo avisada, não pode fazer nada.

Como de praxe, as luzes apagaram-se às nove horas da noite, logo após a porta do dormitório ser trancada. A televisão, como de costume, foi subitamente desligada. Dona Julia, como era chamada, custou a dormir. A escuridão do dormitório, o eco dos passos dos enfermeiros pelos corredores, o vento nas janelas, o reencontro com Jacaré, tudo fazia Julia reviver a excitação de sua vida de assaltante glamurosa. Os breves períodos na prisão, os inúmeros reencontros com Jacaré, a filha gerada por descuido, o primeiro homicídio, o segundo, os requintes de crueldade, a surpresa com a própria maldade. A sua vida inteira passou diante de seus olhos como num filme. Como num sonho.

O mesmo homem de terno azul-escuro apareceu novamente. Desta vez o tempo seria mais exíguo: o Jacaré não passa dessa semana. Dona Julia arregalou os olhos como se visse fantasma no teto frio do quarto. Chorou. Urrou e gritou de dor a noite inteira. Os enfermeiros continuaram dormindo indiferentes ao sofrimento da velha. Dona Julia não pôde acompanhar o enterro do seu grande amor.

Anos depois, poucos dias antes de morrer, Julia sonhou daqueles sonhos de novo. Era uma manhã de sol radiante. O homem do terno azul-escuro caminhava numa praia de areia muito alva. Aproximou-se de Julia sentada debaixo de um enorme guarda sol. Livrou-se do terno e pediu a ela que vigiasse suas roupas enquanto daria um mergulho. Nu, nadou em direção ao horizonte até não poder mais ser visto. Mergulhou. O terno azul-escuro, aos poucos, foi coberto pela areia do vento. Uma mão tocou o ombro de Julia. Era Jacaré quem chegava. Os dois se abraçaram. A praia era só deles.