Medidas extremas



Seu Braga, professor de geometria, podia estar fazendo qualquer coisa, passasse um avião, parava e ficava olhando para cima. Acompanhava sua passagem levasse o tempo que levasse. Todos estavam acostumados, seu Braga fazia isso desde criança. Uma mania inofensiva, como de resto eram inofensivas todas as atitudes de seu Braga. Homem bom, espécie de santo. Sempre atencioso com as pessoas, conciliador com a esposa, paciente com as crianças, cordial com os colegas.

Repentina e inexplicavelmente, começou a tomar as medidas das coisas. Era meticuloso em seus procedimentos e fazia questão da precisão nas medidas que tomava. Tomou uma velha trena em sua caixa de ferramentas e mediu a mesa da sala de jantar, logo mais estava enfiado embaixo da cômoda. Ao longo de uma semana, mediu tudo quanto pôde dentro de sua casa e ninguém sabia, nem sequer desconfiava, para que fazia aquilo.

Logo se seguiu à fase de tomar medidas das coisas fora de sua casa. Causou alguns transtornos quando quis tomar as medidas do internato das freiras. Homens não podiam entrar, ele chegou a fantasiar-se de freira e quase conseguiu burlar a vigilância, não fosse ter tossido e chamado a atenção da madre superiora.

Seu Braga tinha uma teoria: as coisas andam fora de esquadro. Existe uma proporção entre todas as coisas e, quem for capaz de desvenda-lá terá descoberto uma lei universal aplicável na solução de problemas que afligem toda a humanidade. Estava seguro disso.

Como desfrutava do respeito de todos na cidade, o tema sobre a tal lei universal das proporções passou a ser o assunto de qualquer encontro onde houvesse mais de três pessoas. Muita gente passou da teoria à prática. Até uma freira se dispôs a anotar as medidas do interior do internato. Muitas crianças adoraram a idéia e, rapidamente, as vendas de réguas, trenas e fitas métricas esvaziou os estoques desses produtos na cidade. Surgiram os aproveitadores que, se valendo da febre medidora que tomava conta do lugar, tiravam vantagens pessoais. Tinha gente alugando trena a preços exorbitantes e até quem vendesse conjuntos de medidas prontas. O prefeito precisou intervir. Reuniu-se com o delegado em sua casa e passou ordens expressas: prenda qualquer pessoa encontrada tomando medidas na cidade. Mas isso é ilegal, não existe lei alguma que proíba as pessoas de usarem réguas e trenas para tomarem medidas; ponderou o aflito delegado. Agora existe. Eu acabo de promulgar essa lei. Fica terminantemente proibido o uso de qualquer instrumento de medida na cidade sob pena de reclusão caso haja flagrante. Mal saiu e o delegado passou por um animado grupo de meninas que tomavam as medidas do coreto da praça. Como poderia prender aquelas inofensivas garotas? Pressentiu problemas.

Para alívio do delegado, do prefeito e de toda a cidade, seu Braga anunciou, num comunicado pago no jornal local, estar encerrada a fase de recolhimento de dados de sua pesquisa. De agora em diante, o trabalho seguiria incessante e solitário em seu gabinete. Já dispunha de um conjunto de medidas suficiente para que pudesse chegar a uma fórmula definitiva da lei da proporção universal.

A cidade comemorou a notícia. Todo o exército de medidores mobilizado na tarefa de tomar as medidas de tudo quanto fosse mensurável na cidade sentiu-se recompensado e orgulhoso por ter cumprido a função a eles incumbida, muito embora nunca lhes tenha sido atribuída função alguma, senão eles próprios se dispuseram, por livre e espontânea vontade, à execução daquela árdua tarefa.

Após quinze dias fechado em seu gabinete, sem sair nem mesmo para alimentar-se ou dormir, seu Braga tinha concluído seu projeto. Finalmente, convidou toda a alta sociedade, todo o corpo docente da escola e todos aqueles interessados na solução dos problemas do mundo a assistirem à sua exposição sobre a lei universal das proporções. Marcou uma conferência às 21 horas do sábado seguinte, no salão nobre da escola. Passou a semana toda agitadíssimo, andando apressado pelas ruas, comprando roupa nova para a grande noite e deixando transparecer uma enorme euforia a todos que lhe prestassem alguma atenção. Seu Braga estava radiante.

Chegado o dia da apresentação e a cidade não falava em outra coisa. O professor levantou-se antes ainda de o dia clarear. Na padaria, na banca de jornal, na praça da matriz, todos apontavam seu Braga de passagem aqui e ali. Quem teve aulas com ele nos tempos de escola, se orgulhava de sua época e, tinha sempre uma estória atestando a genialidade do professor. Quase todo mundo dizia ter tido aulas com ele, mesmo gente que nunca pisou numa escola.

Uma hora antes do horário marcado o salão nobre da escola já estava lotado. O prefeito ainda não tinha aparecido e, certamente, quando chegasse, exigiria um lugar. O difícil era imaginar quem aceitaria ceder seu posto tendo chegado tão cedo. Aquilo não acabaria bem, pensava o aflito delegado.

A rua da escola já estava completamente tomada pela multidão quando o prefeito apareceu na esquina. Seria impossível abrir-lhe passagem e, ao notar a situação, telefonou ao seu Braga, já na escola desde as duas horas da tarde, e ordenou-lhe que suspendesse a apresentação daquela noite. Não admitiria o enunciado de sua lei universal das proporções sem a sua presença. Seu Braga torceu o nariz, mas concordou que sem a presença do prefeito, nem ele gostaria de anunciar aquilo que tinha para anunciar.

Foi muito difícil para o delegado conter a fúria da multidão, principalmente daqueles que já se encontravam no interior do salão nobre. As coisas só não ficaram realmente piores por que seu Braga fez uma aparição pública. Da janela da sala dos professores, suspensa sobre a grande escadaria de acesso à escola, completamente abarrotada de gente, seu Braga anunciou: Devido à necessidade de refazer alguns cálculos, o anúncio da lei universal das proporções será adiado por dois dias. O burburinho foi geral.

Ninguém sabe como, e aquilo viraria um mistério na história da cidade, o domingo transcorreu na mais tranqüila ordem. Nenhum vestígio da baderna e do alvoroço que tomaram conta da cidade no sábado. A cidade amanheceu silenciosa e o domingo passou indiferente ao acontecido no sábado e ao que aconteceria na segunda. As crianças chutaram bola nos quintais, os casais passearam na praça, os jornais foram lidos e os almoços de família acabaram todos em paz.

Na segunda, logo pela manhã, começou a distribuição das senhas para o anúncio da lei universal das proporções. Quem não conseguisse senha poderia acompanhar tudo junto a um telão instalado na praça da matriz. O prefeito ganhou a senha de número um. Tudo pronto e nada poderia atrapalhar o anúncio da tão esperada fórmula. Foi decretado ponto facultativo nas repartições públicas e as aulas foram suspensas. Seu Braga tomou o caminho da escola às quatro da tarde, gostava de chegar sempre cedo aos seus compromissos. Interrompeu seu trajeto apenas para mirar, atentamente, um avião que voava solene naquela tarde de céu azul. Todos que viram seu Braga com as mãos na testa, como fossem a aba de um boné a lhe proteger os olhos do sol, fizeram o mesmo.

O relógio da praça da matriz badalou nove vezes e seu Braga adentrou o salão nobre da escola. Não caberia mais nenhuma mosca, todos aplaudiram sua chegada e, na praça da matriz, a multidão – olhos colados no telão – gritava vivas ao professor. Seu Braga falou por cerca de quatro horas. Apresentou medidas, deduziu fórmulas incompreensíveis, exibiu gráficos e, quando já passava de uma hora da manhã, anunciou solene: não resta dúvida, por todo o já exposto, que o mundo anda fora de esquadro. Fica assim demonstrada, através da aplicação da Lei universal das proporções, que a proporção das coisas excedeu, em muito, os limites de nossa capacidade de atuação. Bateu com os papeis na mesa de modo a alinhar o enorme maço de anotações, tirou os óculos, olhou na direção do prefeito, sentado na primeira fila, e fez um gesto com as mãos indicando que a exposição estava encerrada.

O prefeito olhou para trás e certificou-se de que todos estivessem tão atônitos quanto ele. O povo, que se amontoava na praça da matriz em frente ao telão, começou um movimento de protesto. Logo o protesto virou quebra-quebra.

Uma escolta policial precisou conduzir seu Braga até sua casa. Sua esposa, envergonhadíssima, foi logo tirando satisfações. Seu Braga, muito tranqüilo, explicou não estranhar a reação popular uma vez que a linguagem científica não costuma ser compreendida pelas pessoas com menos instrução. Mal teve tempo de terminar sua argumentação e o prefeito já batia em sua porta. Seu Braga pediu que entrasse e foi logo pedindo à esposa que passasse um cafezinho, tinham visitas. O prefeito dispensou a cortesia e foi, dedo em riste, na direção de seu Braga. O senhor passou das medidas, seu Braga! Seu Braga sorriu aliviado e abraçou o prefeito. Recuou dois passos e, segurando os braços do colega, anunciou aliviado: Sabia que o senhor me entenderia. Essa é a questão. Em linguagem de dia de semana toda a teoria é essa: a humanidade passou das medidas.

O prefeito saiu da casa de seu Braga convencido de que ele tinha perdido o juízo. Chegando a sua casa telefonou a alguns conhecidos e providenciou a internação para a manhã seguinte.

Seu Braga, sempre pacífico, não ofereceu resistência, pelo contrário, foi até bastante cordial e dispensou a camisa-de-força. Foi levado ao manicômio da cidade. Poucos dias se passaram e a febre de medição tomou conta do lugar. Em pouco tempo, seu Braga reproduzia a exposição que fizera no salão nobre da escola para seus colegas do manicômio. Lá também ninguém entendeu patavina.

A coisa começou a agravar-se quando seu Braga começou a agir no sentido de reparar aquilo que acreditava estar fora de proporção. Primeiro, podou algumas árvores do pátio, depois, cerrou a porta de um armário e por fim, amputou o próprio dedo mindinho. Uma junta médica foi convocada a pedido do prefeito. Vários especialistas debruçaram-se sobre o caso e marcaram uma data para apresentar suas conclusões. Falaram por cerca de três horas, apresentaram dados, gráficos e até textos internacionais sobre o assunto e, ao final da exposição, concluíram ser inegável que seu Braga tinha excedido as medidas e que eles, os médicos membros da tal junta, não poderiam fazer nada. O problema excedia, em muito, os limites de sua capacidade de atuação. O prefeito engoliu seco. Sentia-se enganado. Mandou chamar o delegado. Relatou ao colega os fatos ocorridos e exigiu que todos os oito membros da junta médica fossem recolhidos ao xadrez sob acusação de charlatanismo.

O delegado, farejando problemas, explicou ao prefeito que prender um grupo composto por oito pessoas, excedia, em muito, a capacidade da delegacia. Para prendê-los, outros presos deveriam ser soltos. Ao que o prefeito redargüiu não ser possível, por tratar-se de uma medida que excederia, em muito, os limites de sua capacidade de atuação.

Estavam o delegado e o prefeito de mãos atadas. Precisavam tomar uma providência, porém não sabiam qual. Convocaram o Bispo da diocese. Expuseram-lhe toda a situação. O Bispo ouviu a tudo muito atentamente, bebeu um gole d’água, limpou o pigarro da garganta e anunciou: Meus filhos, as dimensões do problema por vocês apresentado excedem, em muito, os limites de minha capacidade de atuação, infelizmente temo não poder ajudá-los.

O prefeito, incansável, solicitou a presença do governador do Estado argumentando estarem diante de um problema que em muito excedia os limites da esfera municipal.

O Governador foi recebido pela banda da cidade com muita festa. O prefeito colocou-o a par do ocorrido. Não suprimiu nenhum detalhe para assegurar-se de que o governador estivesse fornido de todos os elementos necessários a fim de formular um veredicto definitivo para o caso. O Governador deu alguns telefonemas e, anunciou ao prefeito ter solicitado a vinda do Presidente. Estava claro que as dimensões da questão excediam, em muito, os limites de sua capacidade de atuação.

Numa cidade pequena as notícias correm rápidas. Seu Braga parecia muito satisfeito. Ouvia os relatos com atenção e saía falando consigo: quando eu falei, ninguém entendeu... Agora talvez compreendam.

O presidente quis conhecer seu Braga pessoalmente. Foi levado até o manicômio. Contam que enquanto o presidente conversava com seu Braga, este pediu licença e afastou-se por um instante. Passava um avião e o presidente, mais alto que seu Braga, dificultava-lhe a visão. Afastou-se dois passos para trás, observou atentamente o avião e, após sua passagem, colocou-se novamente diante do presidente. Ao final da conversa, a qual ninguém teve acesso, o presidente exigiu uma apresentação particular da teoria universal das proporções. Queria mais detalhes. Arranjaram, para a noite seguinte, uma sala com quadro negro onde seu Braga pudesse expor sua teoria. Compareceram, além do presidente, o governador, o prefeito, o delegado, o bispo e o diretor do manicômio. Após novas quatro horas de apresentação, o presidente teve uma reação surpreendente: abraçou seu Braga efusivamente e, lá mesmo, o convidou a ocupar o ministério da ciência e tecnologia. Explicou que o cargo se encontrava vago por motivos que excediam os limites de sua autoridade; a morte do ex-ministro. Todo o país aplaudiu a decisão.

Seu Braga, alçado do posto de professor ao de ministro, deixou a cidade num desfile de carro aberto. Uma multidão acompanhou sua partida. O prefeito e o delegado estavam satisfeitos e orgulhosos com a visibilidade que a cidade ganharia no cenário nacional. Foi construído um busto em bronze na praça da matriz em homenagem a seu Braga, o filho mais ilustre da cidade. A escola e a biblioteca ganharam seu nome.

No aeroporto, durante seu embarque, o professor permaneceu hipnotizado pelos aviões. Sua paixão em acompanhar o curso das aeronaves fez com que perdesse seu vôo inúmeras vezes. O homem permanecia estático mirando os aviões. Só quando, tarde da noite, o tráfego de aviões foi interrompido, seu Braga voltou a si. Tarde demais, tiveram que levar o homem de ônibus.

Seu Braga era homem de lida fácil e o presidente logo se afeiçoou a ele. Tanto que, não raro, tomavam juntos o lanche da tarde. As esquisitices de seu Braga divertiam o presidente. Mas, como houvera ele mesmo demonstrado com sua fórmula, tudo está sujeito a uma proporção que precisa ser respeitada. O professor, digo o ministro, transgrediu a lei por ele mesmo formulada e, isso lhe custou o cargo e a liberdade.

O caso se passou como relato a seguir: Durante um dos lanches da tarde, uma borboleta laranja e preta, tamanho médio, pousou sobre o balcão, bem diante do copo de leite de seu Braga. Bateu as asas sem alçar vôo, espécie de tremelique gracioso. O presidente olhou-a com indiferença, seu Braga não. Ele tomou a borboleta entre seus dedos, aproximou-a do rosto e, após um breve instante de hesitação, esquecendo-se que não estava sozinho, levou o inseto até sua boca. Comeu a borboleta viva. Em seguida, tomou um gole de leite e arrotou. O presidente, diante daquela cena medonha, engasgou-se com o pedaço de pão que comia. Seu Braga havia excedido os limites do plausível e aquilo exigia providências.

O ministro, digo o professor, voltou ao manicômio. A Lei universal das proporções foi abandonada. Todo o país lamentou, mas teve de concordar com a medida.

No hospício, seu Braga continuou fazendo aquilo que sempre fez: horas fechado em seu quarto, perdido em meio a anotações, gráficos e tabelas. Só que agora, diziam que suas teorias eram malucas, coisas sem fundamento, afirmações que ninguém seria capaz de compreender. Estava maluco de pedra. Pinel. Doidinho da Silva. Tudo por causa de uma borboleta.