domingo, 19 de setembro de 2010

Pais e mestres

- Papai, vou na pracinha brincar com os meus amigos. Posso?
Claro que pode. E lá se foi meu filho correndo rumo a sua infância. Eu fiquei com aquele riso meio besta de pai quando percebe o filho feliz.
Antes de ser pai alimentava a fantasia de ser um mestre para o meu filho, aquele cara que diz sempre coisas muito sabias e ponderadas, capaz de resolver as questões mais cabeludas com frases curtas, certeiras e contundentes.
Logo que o Léo chegou essa fantasia começou a cair por terra. Não que ele fosse excepcionalmente especial, era a fantasia que era muito primária embora ele seja realmente especial.
Abri a porta da minha casa e fiquei observando meu filho brincando com seus amigos. Todos mais velhos, uma turminha na faixa de sete-oito anos e o Léo com seus espetaculares cinco anos de idade. Jogavam bola.
Logo observei, com meus olhos de pai, o exercício da crueldade costumeiramente exercida pelos seres mais poderosos sobre os mais frágeis. O Léo ficava correndo atrás da bola como um autista, totalmente alijado da disputa e das brincadeiras, ele era muito mais um estorvo do que um participante. Estava sempre atravessando o caminho de um dos meninos, quase sempre distraído nas raras vezes em que a bola vinha em sua direção e atropelado por um garoto mais afoito.
Tratei de fechar a porta, não teria cabimento me intrometer na brincadeira, meu filho que se virasse, eles que se entendessem pensei, a um só tempo,orgulhoso e surpreso com meu desprendimento.
Confesso que sofria pelo meu filho. Fiquei confabulando mil teorias sobre a natureza humana e seu pendor para o sadismo e a crueldade. A clareza sobre a boa índole dos amiguinhos do Léo só reforçava meu descrédito com a natureza da raça humana. São crianças ótimas, sendo bem educadas, freqüentando boas escolas, vivendo em famílias estruturadas e mesmo assim cruéis. A medida que absolvia as crianças condenava a espécie. Bicho cruel, sádico, mau.
Chegava a hora do almoço, já tinha mudado o assunto de meus pensamentos quando fui a pracinha chamar meu filho para o almoço. No caminho percebi ele totalmente alijado do jogo. Estava agachado apoiado no poste que ilumina apraça.
- Venha, vamos almoçar meu filho.
- Espera papai, não posso sair agora.
Como não podia se estava ali sentado sem fazer nada?
- Não papai, espera, eu não posso.
Ficou em pé meio eufórico para justificar-se:
- Não posso sair agora. Estamos no meio do jogo.
Lamentei pela ingenuidade do garoto, pois era óbvio que ele não participava do jogo, pelo menos era isso que eu pai-sábio imaginava. Foi quando a bola veio em nossa direção e o Léo atirou-se num salto espetacular – para mim foi um salto espetacular – desviando a bola com um tapa providencial. Para que tanto esforço perguntava perplexo comigo mesmo.
- Eles falaram para eu ficar aqui e não deixar a bola quebrar a luminária.
Jogou a bola na direção dos meninos que nem agradeceram e retomaram o jogo. O Léo estava eufórico e ocupado demais para almoçar. Voltou a acocorar-se diante do poste de luz. Enquanto a bola era chutada longe dali ele cutucava uma formiga graúda com um graveto arrancado ali ao lado. Vez por outra espiava o andamento do jogo, punha-se a postos, em pé, olhar atento sempre que a bola fazia menção de aproximar-se para logo retomar a tortura com a formiga. Fiquei deveras surpreso e fascindado com a felicidade do Léo num contexto no qual eu estaria revoltado e teorizando ressentido sobre a condição humana.
Defendi junto a minha companheira e mãe do Léo a idéia de que o menino almoçasse mais tarde, afinal era domingo.
À medida que mastigava refletia sobre a relação entre mestres e aprendizes, evidente que não cheguei a nenhuma conclusão, mas revi alguns conceitos sobre a espécie humana. Incrível como somos aptos a sermos felizes com coisa pouca enquanto ainda estamos deslumbrados diante da vida.
- Vá lavar as mãos antes de comer, elas estão imundas.
- Depois do almoço posso voltar a brincar com meus amigos?
- Claro que pode, eu vou lá com você.
- Não precisa papai.
- Precisa sim, vou lá ver vocês brincarem. Vai ser bom para mim.
- Então tá bom, você pode ir. Você pode cuidar para a bola não ir pra rua.
- Está bem, agora come.