quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Um conto de natal



Magda está de dieta. Ninguém da família sabe, afinal todos dizem que ela já está muito magra e ninguém concordaria com uma dieta para uma menina com treze anos que pesa quarenta e cinco quilos. Seu presente de natal será um DVD de um desses grupos de jovens adolescentes que se revezam no primeiro lugar das paradas de sucesso. Seus pais prepararam uma linda festa de natal, com presépio, ceia, amigo secreto e papai Noel. Bem na hora que o bom velhinho chegou, Magda estava vomitando no banheiro. Magda estava pensando em se matar, mas como o pai avisou que o Papai Noel já estava indo embora a menina arrumou o cabelo, ajeitou a roupa e voltou, abraçada ao pai, para a festa de natal. Por sorte, chegou a tempo de receber das mãos do papai Noel seu DVD novo.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

A tarada do elevador


Dona Mercedes já estava muito próxima, apenas algumas poucas quadras, dois, talvez três, faróis e chegaria ao local de sua tão temida entrevista. Entre um cruzamento e outro conferia a sua aparência no retrovisor para logo em seguida ajustar o espelho à função original. A leve chuva que caia tornava o trânsito ainda mais lento do que o habitual. Parada no farol Dona Mercedes checou sua roupa, passou a mão nos ombros para limpar a caspa, coisa que ela nunca teve, mas sempre receou ter. Suspirou fundo. Ergueu e soltou os ombros buscando relaxar um pouco. Buzinaram. Ai, que povo mais sem paciência, pensou dona Mercedes à medida que punha o carro em movimento. Num ato impulsivo e libertário afrouxou o cinto de suas calças. Soltou a barriga e deu um longo suspiro de alívio. Ufa!

Finalmente chegou ao destino. Dez minutos antes do combinado. Bom sinal. Por sorte o prédio ficava ao lado de um estacionamento. Entregou a chave do carro ao manobrista, deu uma última olhada no retrovisor e desceu. O manobrista aguardava indiferente, tomou a chave em suas mãos e entregou o tíquete à dona Mercedes.
A entrada do prédio era suntuosa. Erregê, cepeéfi, foto, nome, destino. Uma verdadeira operação de guerra só para entrar no prédio, depois ainda viria a entrevista.
Dona Mercedes ainda podia se considerar jovem. Pela sua aparência, seus quarenta e quatro anos de idade poderiam facilmente ser reduzidos a uns trinta e oito, talvez trinta e sete. Estava desempregada já há um ano. Filho criado, separada, dependia muito mais de seu salário do que da pensão irrisória que recebia do ex.
Finalmente o elevador chegou. Ele já veio bem cheio da garagem do andar de baixo.
- Por favor. O rapaz fez um gesto abanando o braço direito e curvando a coluna. Deu passagem à dona Mercedes que agradeceu e procurou o painel com o número dos andares.
- Em qual andar a senhora vai?
- Décimo quarto, por favor.
- Vai no escritório da Irmanos Brothers Consultory?
- Sim senhor.
- Eu trabalho lá.
- Vou fazer uma entrevista.
- Boa sorte.
Essa breve conversa foi seguida por um silêncio constrangido. Dona Mercedes deu dois passos para trás, pois o elevador parou no terceiro andar e entraram mais cinco pessoas. Continuaram a conversa que mantinham enquanto esperavam o elevador.
- Olha, mas essa mancha no rosto não dá nem para perceber.
Todos no elevador, que até então não tinham percebido a mancha no rosto do rapaz, rapidamente identificaram o sinal escurecido ao lado do seu olho direito.
- Nossa, não dá para perceber de jeito nenhum, é bem disfarçada. Eu no seu lugar não faria cirurgia nenhuma. Isso é uma nota e a gente nem sabe se vai ficar bom. Deixa assim que está ótimo, ninguém percebe.
Novo silêncio. O elevador parou no sétimo andar, saíram duas pessoas e entraram mais cinco. No saldo eram três pessoas a mais e dona Mercedes encurralada no fundo do elevador. Pisaram no seu pé.
- Ôps, desculpe.
- Não foi nada.
Os que entraram continuaram a conversa lá de fora.
- Tenho certeza que foi no ano passado. Chamaram até os bombeiros.
- Eu lembro, pois eu fui um dos que foram resgatados pelos bombeiros. Mas não foi no ano passado, imagine, faz muito mais tempo. Os elevadores nem tinham passado ainda pela vistoria.
Quando o elevador parou no décimo andar e dona Mercedes viu mais um grupo de quatro rapazes não teve dúvidas:
- Já está lotado.
- Não, cabe mais um.
- Mas são quatro.
- Ah, mas dá-se um jeitinho. Para tudo tem um jeito.
Todo mundo deu um passinho para trás, menos dona Mercedes que já estava encostada na parede do fundo do elevador.
- Não cabe gente, esse elevador vai cair.
- Cabe sim, pode entrar, tem gente que não colabora, mas dá para entrar sim, dá-se um jeito.
Entraram os quatro rapazes e mais uma senhora que deu uma corridinha antes que a porta do elevador se fechasse.
- Obrigado.
E continuaram o papo lá de fora.
- Eu não pego fila de terceira idade, Deus me livre. Já moro sozinha, não tenho ninguém, se pegar a fila da terceira idade no banco aí que eu não converso com mais ninguém. Encontro tanta gente simpática para conversar. Fila de terceira idade? Não uso mesmo.
Pararam no décimo segundo.
- Gente, pelo amor de Deus, não cabe mais ninguém. Dona Mercedes foi voto vencido.
- Cabe sim, para tudo dá-se um jeito. É só apertar mais um pouquinho.
Entraram.
- Tem gente que só pensa em si.
- Mas é que eu já estou toda amassada.
- Todo mundo está minha senhora.
- Mas eu estou mais, estou aqui no fundo.
Silêncio.
Pararam no décimo terceiro onde desceram duas pessoas.
- Olha, acho que vou descer aqui, eu subo o último lance de escada.
- Esse elevador não dá acesso às escadas.
Finalmente chegaram ao décimo quarto. Dona Mercedes pedia licença, estava aflita e com medo de não conseguir sair.
- Vai descer, vai descer. No afã de não perder o andar dona Mercedes conjugava o verbo como se fosse índio: Vai descer.
Uns saíram do elevador, outros se apertaram, mas todos perceberam que as calças de dona Mercedes estavam caindo. Foi culpa do cinto que ela afrouxou quando ainda estava no carro. Conforme ela ia andando a calça ia descendo. O constrangimento foi geral. Dona Mercedes, com as calças já nos joelhos, atribuía a dificuldade em andar à aglomeração no elevador, não percebeu que suas calças já estavam abaixo dos joelhos.
Quando finalmente saiu do elevador, aqueles que tinham saído para que ela pudesse descer voltaram rindo para o elevador.
Foi só quando já estava fora do elevador e a porta já quase fechada que dona Mercedes deu conta de que suas calças já estavam nos seus pés. Ficou roxa de vergonha, suspendeu as calças e quis sumir. Os que passavam pelo corredor afetavam indiferença, mas o acontecido virou assunto por anos. A mulher que tirou as calças no elevador. Uns diziam que ela se masturbava, uma tarada por aglomerações, outros garantiam que era uma louca totalmente obcecada por sexo.
Dona Mercedes desistiu da entrevista e fugiu pelo elevador dos fundos.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

domingo, 19 de setembro de 2010

Pais e mestres

- Papai, vou na pracinha brincar com os meus amigos. Posso?
Claro que pode. E lá se foi meu filho correndo rumo a sua infância. Eu fiquei com aquele riso meio besta de pai quando percebe o filho feliz.
Antes de ser pai alimentava a fantasia de ser um mestre para o meu filho, aquele cara que diz sempre coisas muito sabias e ponderadas, capaz de resolver as questões mais cabeludas com frases curtas, certeiras e contundentes.
Logo que o Léo chegou essa fantasia começou a cair por terra. Não que ele fosse excepcionalmente especial, era a fantasia que era muito primária embora ele seja realmente especial.
Abri a porta da minha casa e fiquei observando meu filho brincando com seus amigos. Todos mais velhos, uma turminha na faixa de sete-oito anos e o Léo com seus espetaculares cinco anos de idade. Jogavam bola.
Logo observei, com meus olhos de pai, o exercício da crueldade costumeiramente exercida pelos seres mais poderosos sobre os mais frágeis. O Léo ficava correndo atrás da bola como um autista, totalmente alijado da disputa e das brincadeiras, ele era muito mais um estorvo do que um participante. Estava sempre atravessando o caminho de um dos meninos, quase sempre distraído nas raras vezes em que a bola vinha em sua direção e atropelado por um garoto mais afoito.
Tratei de fechar a porta, não teria cabimento me intrometer na brincadeira, meu filho que se virasse, eles que se entendessem pensei, a um só tempo,orgulhoso e surpreso com meu desprendimento.
Confesso que sofria pelo meu filho. Fiquei confabulando mil teorias sobre a natureza humana e seu pendor para o sadismo e a crueldade. A clareza sobre a boa índole dos amiguinhos do Léo só reforçava meu descrédito com a natureza da raça humana. São crianças ótimas, sendo bem educadas, freqüentando boas escolas, vivendo em famílias estruturadas e mesmo assim cruéis. A medida que absolvia as crianças condenava a espécie. Bicho cruel, sádico, mau.
Chegava a hora do almoço, já tinha mudado o assunto de meus pensamentos quando fui a pracinha chamar meu filho para o almoço. No caminho percebi ele totalmente alijado do jogo. Estava agachado apoiado no poste que ilumina apraça.
- Venha, vamos almoçar meu filho.
- Espera papai, não posso sair agora.
Como não podia se estava ali sentado sem fazer nada?
- Não papai, espera, eu não posso.
Ficou em pé meio eufórico para justificar-se:
- Não posso sair agora. Estamos no meio do jogo.
Lamentei pela ingenuidade do garoto, pois era óbvio que ele não participava do jogo, pelo menos era isso que eu pai-sábio imaginava. Foi quando a bola veio em nossa direção e o Léo atirou-se num salto espetacular – para mim foi um salto espetacular – desviando a bola com um tapa providencial. Para que tanto esforço perguntava perplexo comigo mesmo.
- Eles falaram para eu ficar aqui e não deixar a bola quebrar a luminária.
Jogou a bola na direção dos meninos que nem agradeceram e retomaram o jogo. O Léo estava eufórico e ocupado demais para almoçar. Voltou a acocorar-se diante do poste de luz. Enquanto a bola era chutada longe dali ele cutucava uma formiga graúda com um graveto arrancado ali ao lado. Vez por outra espiava o andamento do jogo, punha-se a postos, em pé, olhar atento sempre que a bola fazia menção de aproximar-se para logo retomar a tortura com a formiga. Fiquei deveras surpreso e fascindado com a felicidade do Léo num contexto no qual eu estaria revoltado e teorizando ressentido sobre a condição humana.
Defendi junto a minha companheira e mãe do Léo a idéia de que o menino almoçasse mais tarde, afinal era domingo.
À medida que mastigava refletia sobre a relação entre mestres e aprendizes, evidente que não cheguei a nenhuma conclusão, mas revi alguns conceitos sobre a espécie humana. Incrível como somos aptos a sermos felizes com coisa pouca enquanto ainda estamos deslumbrados diante da vida.
- Vá lavar as mãos antes de comer, elas estão imundas.
- Depois do almoço posso voltar a brincar com meus amigos?
- Claro que pode, eu vou lá com você.
- Não precisa papai.
- Precisa sim, vou lá ver vocês brincarem. Vai ser bom para mim.
- Então tá bom, você pode ir. Você pode cuidar para a bola não ir pra rua.
- Está bem, agora come.

domingo, 5 de setembro de 2010

Devo. Não nego. Pago quando puder

Quando fico feliz por muito tempo me sinto um canalha. Sei que ainda estou em dívida comigo, com o outro e com o mundo. Um brinde às dívidas!